Você já deve ter ouvido falar que todos os dias nós aprendemos alguma coisa nova, certo? Ou pelo menos somos expostos a algo novo. Se a gente aprende ou não, já é outra história.
Não sei se isso é mesmo verdade - e confesso que vai ser um pouco difícil fazer um levantamento retroativo pra confirmar ou não essa afirmação -, mas se for, os dias que eu passei na Suazilândia bateram todos os recordes pessoas de lições aprendidas.
Claro que eu vou explicar o porquê disso ao longo desse post, mas antes vamos começar pelo começo. Lembro que no post introdutório dessa viagem ao continente africano, que escrevi antes de embarcar, eu mencionei o quão empolgado estava para conhecer a Suazilândia, uma das menores nações do planeta.
Desde criança, sempre me interessei por micro-nações e países menos conhecidos, e depois que comecei a viajar, adquiri uma pequena obsessão em visitá-los. Esse ano eu já havia visitado Luxemburgo e Malta, o que fez da Suazilândia a terceira dessas pequenas pátrias a me receber.
E como um cara viciado em viajar e conhecer lugares novos que sou, ganhar esse carimbo no meu passaporte me deixou imensamente feliz!
Mas o que a Suazilândia tem de especial? Infelizmente, numa primeira olhada, apenas coisas negativas. Mas assim, extremamente negativas.
Pra você ter uma ideia, o dado mais relevante sobre a Suazilândia é o fato de ser o país com a maior taxa de contaminação por HIV da Terra. Os números são devastadores: incríveis 33% da população é portadora do vírus da AIDS. Sim, uma em cada três pessoas é soropositiva.
As explicações pra essa realidade devastadora passam por vários segmentos da sociedade e vão desde a poligamia - cada homem suazi tem em média cinco mulheres ao mesmo tempo - até o fator político, já que o país é um das últimas monarquias absolutistas ainda em vigor no mundo.
Isso significa que o Rei da Suazilândia - atualmente é o distinto Mswati III - tem poderes plenos sobre tudo o que acontece por lá. É o famoso "manda prender e manda soltar", sabe?
Até existe um parlamento suazi, mas a função oficial dele é "aconselhar" o rei, o que o torna meramente figurativo.
Esse sistema de governo tão atrasado impede que o país progrida e consiga atingir níveis aceitáveis de evolução econômica, o que os ajudaria imensamente nessa questão de saúde. Culturalmente então, fica até complicado situar a Suazilândia no mundo ocidental. Eles estão há anos-luz de distância do que nós estamos acostumados. Só pra você ter uma ideia, até hoje - 2014! -, quando um homem pede uma mulher em casamento (geralmente contra a vontade dela), precisa pagar uma quantidade X de vacas ao pai da noiva. Parece medieval, mas acontece no século 21.
Por essas razões, talvez a maioria das pessoas colocaria um país nessas condições lá no final da lista de desejos de lugares a se visitar. Mas pra sorte deles - e nossa também! -, muita gente pensa diferente e faz questão de ir até lá fazer alguma coisa que mude, mesmo que só um pouquinho, a vida deles.
Eu já falei isso algumas vezes em posts anteriores, mas criei o Viagem Criativa lá em 2012 porque sempre me senti um pouco incomodado com o fato de os brasileiros viajarem o tempo todo pros mesmos lugares. Flórida, Nova Iorque, Paris...claro que são lugares divertidos, mas eu realmente acho que tem tanta coisa diferente pra se ver no mundo que viajar pra Miami pra falar português com os atendentes de loja me parece um enorme desperdício - de várias coisas, não apenas tempo ou dinheiro.
Essa minha vontade de conhecer o que é diferente não fica presa aos pequenos países ou a lugares com dificuldades extremas. Você deve se lembrar que visitei a Finlândia e a Suécia no auge no inverno nórdico - quando os turistas praticamente desaparecem -, enfrentando temperaturas de 20 graus negativos e até mesmo pulando no mar congelado de Helsinki. Esse é o fator que mais me motiva: desafiar a mim mesmo, fugir do que é comum! Sem falar no quão privilegiado eu sou por ter vivenciado realidades tão opostas como dois dos países mais ricos e um dos mais miseráveis do mundo num espaço de poucos meses.
Enfim, voltando aos meus dias suazi, um outro exemplo de gente que prefere deixar as obviedades de lado, é o fato da Suazilândia ser um dos destinos que o pessoal da Pangea Trails mais tem orgulho de ter em seu o roteiro. O Alex, alemão e dono da empresa, diz que não tira a visita ao país do seu roteiro por nada nesse mundo. E eu peço pra ele: não tire mesmo, Alex!
Ele dá tanta importância pra esse lugar, que reserva três dias pro país no seu roteiro que cruza a África do Sul. E outra coisa muito legal foi o hostel que ele escolheu pra hospedar o pessoal. O Lidwala fica na capital Mbabane e além de ter instalações incríveis, é famoso por servir como base para jovens que fazem questão de trabalhar com voluntariado na Suazilândia.
Foi lá que a gente teve a oportunidade de conhecer o trabalho da ONG All Out Africa, que realiza diferentes tipos de trabalhos em diferentes países da África. E vimos que muita garotada bem de vida, de várias partes do mundo, resolve abrir mão de tudo por alguns meses em prol de ajudar quem precisa. Eles poderiam passar um tempo na Disney, na California ou na Europa, mas escolheram ir pra um dos lugares mais sinistros do mundo, em todos os aspectos. Isso foi algo muito confortante de se ver.
Na manhã seguinte à nossa chegada, o pessoal da All Out Africa nos convidou pra sair um pouco da teoria e conhecer de perto o trabalho deles em algumas escolas.
Apesar dos níveis de miséria no Brasil estarem cada vez menores, não dá pra dizer que essa pobreza é novidade pra gente. Infelizmente quem mora no nosso país acabou se acostumando com as tragédias sociais causadas pela má distribuição do dinheiro.
Por causa disso eu achei que veria um cenário relativamente parecido com o nosso, então pensei algo como "ah, isso é chocante pros europeus, mas pra gente é comum".
Foi aí que eu me enganei. E muito.
Chegando na primeira escola, já deu pra sentir que a realidade daquelas crianças é realmente desesperadora. A estrutura que eles têm é muito, mas muito precária. Apenas uma sala de aula pra crianças de diferentes idades com professores que, apesar de dedicados, têm um alto índice de absentismo e isso tem a ver com o fato de vários deles serem soropositivos.
Muitas dessas crianças são levadas pela família até as escolas por um único motivo: comida. Graças ao trabalho voluntário, todas as escolas oferecem café da manhã e almoço pra essas crianças e isso faz com que os parentes valorizem ainda mais o trabalho realizado lá. A "cozinha" onde o almoço é preparado consiste em meia dúzia de pedaços de madeira pegando fogo no chão e dois panelões em cima, um de arroz e outro de feijão.
Nós ficamos uma manhã inteira brincando, nos divertindo e tirando deliciosos sorrisos daquelas crianças, que apesar de passarem dificuldades, não têm muita noção do que as espera daqui alguns anos.
Elas brincam, cantam, dançam, jogam futebol e adoram fazer pose pras fotos - incluindo as selfies! - como absolutamente todas as crianças normais do mundo.
Acontece que elas não são crianças normais. Cerca de 70% delas vivem com os avós, já que os pais pegaram o auge da epidemia de HIV e morreram. E pior: metade, sim, METADE daquela garotada já nasceu com o vírus.
Eu posso garantir pra você, não é nada fácil deitar a cabeça no travesseiro de noite e imaginar que metade daquelas crianças que brincaram comigo de manhã tem uma expectativa de vida que gira entre 5 e 10 anos. E o tempo passa rápido demais. Vai ser muito complicado quando eu pegar essas fotos lá em 2024, por exemplo, e pensar que boa parte daquela molecada já deve ter morrido. É pesado DEMAIS, amigos.
O que realmente dá um certo calor no coração, é ver a quantidade de gente que doa algo mais importante do que dinheiro ou comida: a si mesmo! Doar seu tempo e brincar com eles tem um benefício que não pode ser medido, de tão gigantesco.
Óbvio que grana e comida são necessários, mas a frieza de um depósito no banco não pode ser comparada a algumas horas de brincadeiras, abraços e sorrisos. A esperança existe, mesmo onde a realidade parece a mais infértil possível.
Saindo da última escola que visitamos, era a hora de almoçar.
E claro, comida típica é sempre algo obrigatório em viagens para lugares diferentes.
Nós paramos do lado da rodoviária de Mbabane pra comer o chicken dust, famoso churrasco de frango, preparado no meio da rua, entre a fumaça dos carros e debaixo de um calor incalculável. Não tenho ideia da temperatura que estava esse dia, mas dá pra chutar mais de 40 graus com tranquilidade.
Como não tenho muita frescura pra comer, pulei de cabeça e posso dizer que foi um dos melhores frangos que já comi na vida. De verdade!
De volta ao Lidwala pra descansar um pouco, era a hora de conhecer o passeio da tarde.
O Alex faz esse roteiro quase todos os meses há cerca de dois anos, então ele já criou boas amizades em todas as paradas desse tour.
E lá em Mbabane ele conseguiu que um amigo se tornasse guia por uma tarde, nos levando pra conhecer Lobamba, o bairro mais populoso da capital. É mais ou menos uma versão bem reduzida do Soweto. Lobamba tem um histórico repressão, violência e resistência da população menos favorecida.
O final da tarde reservou um pôr-do-sol muito bonito e durante o nosso jantar por ali, veio mais uma história pra dar um tapa na cara da minha vida.
Estávamos comendo um churrasco, a convite dos moradores locais, quando resolvi ir até o mercadinho ao lado pra comprar umas cervejas, já que as nossas haviam acabado.
Não deu nem tempo de eu chegar até lá, e um dos moradores me parou pra dizer que não, eu não estava autorizado a comprar cerveja. Como eu era convidado pro jantar, seria uma ofensa gigantesca eu gastar algum dinheiro ali. Eles me convidaram, eles pagavam.
Eu não sei se era o último dinheiro, ou se eles tinham alguma necessidade urgente dentro de casa, mas a verdade é que eles poderiam muito bem deixar eu comprar as cervejas e até pedir que comprassem pra eles mesmos.
Mas eles não quiseram. E não deixaram.
Minha última lembrança da Suazilândia é essa. Eles não têm nada. Mas dividiram o nada com um desconhecido. Eu. E aposto que dividiriam com você também.
E a gente vacila o tempo todo, na maioria das vezes por pequenas besteiras.
Muita força e todo o meu respeito aos amigos suazi!
O Viagem Criativa viajou à África do Sul a convite do South African Tourism e com o apoio do Travel Concept Solutions, South African Airways e Detecta Hotel
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